Monday, 18 January 2021

Conto

 


Conto de J.B. Sayeg em seu livro

A Torre de Mandarino

São Paulo: RG Editores, 1999


Embora tenha publicado mais livros de poesia que outros gêneros, Sayeg também publicou contos, um livro infantil, um livro de Direito e um livro sobre a História da União Brasileira de Escritores, este último em co-autoria.

No livro A Torre de Mandarino,  há contos e também  mini-contos, que são como estudos de personagens, focados em algum evento. Um dos contos é de ficção científica, precisamente o que dá título ao volume. Em alguns outros, há reflexão sobre o ofício de escritor, como "Ele não acreditava" e "Alceu". Sempre presente está um olhar crítico ou compassivamente irônico sobre a realidade cotidiana e as pessoas, não desprovido de humor.

A seguir, um dos mini-contos (lembrando, nestes tempos de enxames internéticos, que esta é uma obra de ficção): 


Izidro


Pois ó só quem vem chegando, Izidro, meu vizinho. Detrás deste pilar do portão ele não vai me ver. Chega no volks azul opaco, posso vê-lo descarregar um pacotinho verde mal embrulhado. Deve ser de maconha. Todos os dias nessa mesma hora ele faz isso. Chega, estaciona o carro azul opaco, descarregando o pacotinho verde. Aí eu entro em casa, almoço. Quando são quinze para as duas, fico atrás da janela, vejo o vizinho sair, mas sem o pacotinho, que já deixou em sua casa. Esquisito é que depois do almoço ele sai sem paletó, mas de manhã cedo pendura-o na lateral do carro e a gravata, vai com ela no pescoço. 

A mulher de meu vizinho, dona Carlota, é praticamante da idade dele. Meio rechonchuda. Eles são dois coroas recém-casados. Ela fica o dia inteiro em casa. Às dez horas vai ao Supermercado. Uma vez eu a vi telefonando no orelhão da esquina. Tinha um papelzinho amarelo na mão esquerda e com a direita segurava o telefone. Eu estava no bar comprando cigarros e vi dona Carlota dobrar o papelzinho amarelo, para ninguém ver. A atitude foi muito suspeita. Desse dia em diante fiquei observando. Sempre às três horas da tarde a mulher do meu vizinho sai novamente. Só que dessa vez ela vai com vestidinho melhor ou uma calça comprida, e blusas de seda e mangas largas, bolsa a tiracolo. É faceira, a danadinha. A casa, porém, fica no abandono, eu espio pelo muro, não vejo ninguém. 

À noite, Izidro volta com a mulher e entra com o carro azul opaco no pequeno jardim, fecha o portão, e ninguém mais sai. A luz de fora permanece acesa até as 22h30, quando é apagada, provavelmente porque termina a novela. Eu, nessa hora, apago todas as luzes e fico quieto para ver se caço algum barulho na casa do meu vizinho, mas o silêncio continua. Vou dormir. Logo cedo me levanto e fico atrás do pilar do portão para ver meu vizinho sair. No começo, dona Carlota acompanhava-o até a porta, mas, agora, ele está sozinho, pega o carro e vai direto para a avenida. Eu não sei o que ela faz dentro de casa, quando o marido sai. Passo horas a espreitar pela janela, pelo muro, pelo portão. Às dez, quando dona Carlota vai ao Supermercado, vou atrás, disfarçando por outra calçada, à distância. Aí, ela telefona, o papelzinho amarelo na mão. O que será? Ao meio-dia fico atrás do pilar, esperando meu vizinho chegar. com o volks azul opaco, e descarregar o pacotinho verde, mal embrulhado. É um mistério. 

Pois bem! Um dia desses, se não me engano, sexta-feira passada, Izidro não saiu de sua casa e dona Carlota foi ao orelhão telefonar, como de costume, com o papelzinho amarelo na mão. Fui atrás. Ela telefonou, e jogou o papelzinho no chão. Mais que depressa, peguei o papel e guardei. 

Dona Carlota voltou para casa. Não demorou muito, chegou um caminhão de mudança que levou tudo. Não havia muita coisa. Uns móveis velhos, umas caixas, eletrodomésticos e um caixote enorme, todinho fechado. Dona Carlota acompanhou o caminhão de mudança, dirigindo o fusquinha azul. Parecia-me que não sabia guiar, de tão assustada. Izidro não apareceu, e dona Carlota foi embora sem se despedir de ninguém. Nem o endereço deixou. Até hoje a casa está vazia, não chega nem correspondência atrasada. Olhando o papelzinho amarelo, fico pensando, o que teria acontecido? Também, não interessa. Ninguém fala comigo. Apenas dizem, quando me vêem no portão, oi Curió. 



...

João Baptista Sayeg 

A Torre de Mandarino

São Paulo: RG Editores, 1999






Thursday, 7 January 2021

Poema, comentários, bibliografia

1. Poema
OLHOS DE UM MELRO
Os olhos mecânicos de um melro eram as únicas coisas que se moviam na sala. O quadro de Paul Klee desenhava movimentos de um anjo, eram movimentos eternos, insatisfatórios porque não eram efêmeros resolúveis numa fração de segundo. Os olhos porém eram ágeis, falavam, escutavam, eram olhos indagadores. Eu mesmo me imobilizei apavorado perante aqueles movimentos rápidos e impacientes. Sentei-me na cadeira de grande espaldar defronte à escrivaninha. Dobrei a página, deixando o marcador indicando-me a leitura interrompida. Os olhos se detiveram, por um instante. A seguir, desesperadamente recomeçaram seus inteligentes movimentos.
J. B. Sayeg Pantomimas e Animação, 1989.

2. Comentários

Este é um poema para pessoas cultas. Existem algumas sugestões intertextuais, que foram plantadas propositalmente pelo poeta. Gosto bastante deste poema, pois lembro-me do autor lendo em voz alta em um sarau, quando não eram muito comuns, em um evento de poesia falada, algo assim. Vamos a alguns elementos: 1.  melro - referência ao poema de Wallace Stevens. 2. referência aos automatismos sinistros em autores como Hoffmann, não esquecer de Freud em Das Umheimlich. 3. Referência ao poema das Arcadas do Largo de São Francisco, faculdade em que o autor se formou advogado.  "Folha dobrada ...". 


Primeiro, devemos entender o que diz Wallace Stevens.

Among twenty snowy mountains,   
The only moving thing   
Was the eye of the blackbird.   

Entre vinte montanhas nevadas,
A única coisa que se movia
Era o olho do melro. 

- [minha tradução livre, que fiz agora, pode ser igual ou parecida com alguma outra]. 

Vale analisar apenas esse trecho? Acredito que vale. Depois, podem analisar em contexto com o restante do poema. Afinal, são 13 maneiras ... 
O que para mim parece: aponta para a existência daquele mínimo de subjetividade que sempre se manifesta, mesmo que num pequeno detalhe - algo que na prática clínica em psicanálise é muito importante. Enfim, é a subjetividade que pode se manifestar nessa imobilidade e suspensão da vida no rigoroso inverno da sólida montanha. 
No poema de Sayeg, contudo, o movimento - a subjetividade que resiste - não é mais do ente vivo, mas do mecânico (ou eletrônico), esse autômato que é "inteligente" e  '"indagador" - tornado vivo, enfim. 
Está aí implícita uma intencional crítica à modernidade-contemporaneidade, à crescente obsolescência do ser humano, que é a do poeta, do humanismo, das humanidades. A quem só resta "dobrar a folha".

Quando se sente bater
No peito heróica pancada,
Deixa-se a folha dobrada
Enquanto se vai morrer...

(trova acadêmica da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo no Largo de São Francisco, a Sanfran) 

Esta é uma interpretação minha, não sei se o poeta iria concordar. Assinado, Elisa. 



3. A seguir, alguns livros publicados por JB Sayeg 

Permissivo Amor. - poesia  

Cavalos ao Sol. - poesia




Pantomimas e Animação. - poesia
A torre de Mandarino.  - contos
Um canto para Andrômeda. - poesia  

Ele é um poeta intelectual, cujos poemas requerem interpretação ativa. Existem poetas que falam de forma mais simples, ou intuitiva. Não é o caso dele. Pode-se até entender algo numa leitura rápida. Mas uma posterior leitura refletida faz-se necessária. 


Uma parte do último livro está sendo publicada na seguinte página:

E informações bio-bibliográficas estão sendo compiladas neste site: 



Conto

  Conto de J.B. Sayeg em seu livro A Torre de Mandarino São Paulo: RG Editores, 1999 Embora tenha publicado mais livros de poesia que outros...