Conto de J.B. Sayeg em seu livro
A Torre de Mandarino
São Paulo: RG Editores, 1999
Embora tenha publicado mais livros de poesia que outros gêneros, Sayeg também publicou contos, um livro infantil, um livro de Direito e um livro sobre a História da União Brasileira de Escritores, este último em co-autoria.
No livro A Torre de Mandarino, há contos e também mini-contos, que são como estudos de personagens, focados em algum evento. Um dos contos é de ficção científica, precisamente o que dá título ao volume. Em alguns outros, há reflexão sobre o ofício de escritor, como "Ele não acreditava" e "Alceu". Sempre presente está um olhar crítico ou compassivamente irônico sobre a realidade cotidiana e as pessoas, não desprovido de humor.
A seguir, um dos mini-contos (lembrando, nestes tempos de enxames internéticos, que esta é uma obra de ficção):
Izidro
Pois ó só quem vem chegando, Izidro, meu vizinho. Detrás deste pilar do portão ele não vai me ver. Chega no volks azul opaco, posso vê-lo descarregar um pacotinho verde mal embrulhado. Deve ser de maconha. Todos os dias nessa mesma hora ele faz isso. Chega, estaciona o carro azul opaco, descarregando o pacotinho verde. Aí eu entro em casa, almoço. Quando são quinze para as duas, fico atrás da janela, vejo o vizinho sair, mas sem o pacotinho, que já deixou em sua casa. Esquisito é que depois do almoço ele sai sem paletó, mas de manhã cedo pendura-o na lateral do carro e a gravata, vai com ela no pescoço.
A mulher de meu vizinho, dona Carlota, é praticamante da idade dele. Meio rechonchuda. Eles são dois coroas recém-casados. Ela fica o dia inteiro em casa. Às dez horas vai ao Supermercado. Uma vez eu a vi telefonando no orelhão da esquina. Tinha um papelzinho amarelo na mão esquerda e com a direita segurava o telefone. Eu estava no bar comprando cigarros e vi dona Carlota dobrar o papelzinho amarelo, para ninguém ver. A atitude foi muito suspeita. Desse dia em diante fiquei observando. Sempre às três horas da tarde a mulher do meu vizinho sai novamente. Só que dessa vez ela vai com vestidinho melhor ou uma calça comprida, e blusas de seda e mangas largas, bolsa a tiracolo. É faceira, a danadinha. A casa, porém, fica no abandono, eu espio pelo muro, não vejo ninguém.
À noite, Izidro volta com a mulher e entra com o carro azul opaco no pequeno jardim, fecha o portão, e ninguém mais sai. A luz de fora permanece acesa até as 22h30, quando é apagada, provavelmente porque termina a novela. Eu, nessa hora, apago todas as luzes e fico quieto para ver se caço algum barulho na casa do meu vizinho, mas o silêncio continua. Vou dormir. Logo cedo me levanto e fico atrás do pilar do portão para ver meu vizinho sair. No começo, dona Carlota acompanhava-o até a porta, mas, agora, ele está sozinho, pega o carro e vai direto para a avenida. Eu não sei o que ela faz dentro de casa, quando o marido sai. Passo horas a espreitar pela janela, pelo muro, pelo portão. Às dez, quando dona Carlota vai ao Supermercado, vou atrás, disfarçando por outra calçada, à distância. Aí, ela telefona, o papelzinho amarelo na mão. O que será? Ao meio-dia fico atrás do pilar, esperando meu vizinho chegar. com o volks azul opaco, e descarregar o pacotinho verde, mal embrulhado. É um mistério.
Pois bem! Um dia desses, se não me engano, sexta-feira passada, Izidro não saiu de sua casa e dona Carlota foi ao orelhão telefonar, como de costume, com o papelzinho amarelo na mão. Fui atrás. Ela telefonou, e jogou o papelzinho no chão. Mais que depressa, peguei o papel e guardei.
Dona Carlota voltou para casa. Não demorou muito, chegou um caminhão de mudança que levou tudo. Não havia muita coisa. Uns móveis velhos, umas caixas, eletrodomésticos e um caixote enorme, todinho fechado. Dona Carlota acompanhou o caminhão de mudança, dirigindo o fusquinha azul. Parecia-me que não sabia guiar, de tão assustada. Izidro não apareceu, e dona Carlota foi embora sem se despedir de ninguém. Nem o endereço deixou. Até hoje a casa está vazia, não chega nem correspondência atrasada. Olhando o papelzinho amarelo, fico pensando, o que teria acontecido? Também, não interessa. Ninguém fala comigo. Apenas dizem, quando me vêem no portão, oi Curió.
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João Baptista Sayeg
A Torre de Mandarino
São Paulo: RG Editores, 1999